O livro Ao encontro da sombra (Zweig e Abrams) é uma coletânea de artigos
sobre as diversas manifestações do lado escuro da natureza humana: no seio da
família, nos relacionamentos íntimos, na sexualidade, no trabalho, na
espiritualidade, na política...
No
artigo "O encontro do oposto no parceiro conjugal", Maggie Scarf
elucida de forma brilhante o quanto as características do nosso eu reprimido
podem coincidir (devido a identificação projetiva) com as características do ser
amado. Quando nos relacionamos com alguém que é o nosso oposto
(passivo/agressivo, introvertido/extrovertido, religioso/ateu,
comunicativo/reservado), e isso não é nada incomum!, o parceiro acaba por se
tornar o portador de nossas fraquezas, deficiências e aptidões/qualidades
latentes. Torna-se, ao mesmo tempo, fonte de atração e repulsão. Inicialmente
nos atraímos pela possibilidade de compensação que o outro representa (uma
mulher tímida, por exemplo, viverá sua extroversão via marido, permitindo que
ele fale por ela) mas, a longo prazo, a não integração dos aspectos que estão
latentes em nós e evidentes no outro acarretará uma série de conflitos:
estaremos, diariamente, "dormindo com o inimigo", estaremos diante
daquele que personificou nossa sombra e que cotidianamente nos expõe à nossas
limitações.

O
encontro do oposto no parceiro conjugal
Maggie Scarf
"Um fato da realidade conjugal, bem
conhecido pelos especialistas nessa área, é que as qualidades citadas pelos
parceiros como as que primeiro os atraíram um para o outro coincidem com aquelas
que são identificadas como as fontes de conflito no decorrer do
relacionamento. As qualidades "atraentes" recebem, com o tempo, novos
rótulos; tornam-se as coisas más e difíceis do parceiro, os aspectos de sua
personalidade e comportamento que são vistos como problemáticos e negativos.
Por exemplo, o homem que se sentiu
atraído pelo calor, empatia e fácil sociabilidade da esposa poderá, em algum
momento futuro, redefinir esses mesmos atributos como "estridência",
"intromissão" e uma maneira "superficial" de se relacionar
com os outros. A mulher que inicialmente valorizava o marido pela sua
confiabilidade, previsibilidade e pelo senso de segurança que ele lhe oferecia,
poderá, ao longo do caminho, condenar essas mesmas qualidades como tediosas,
enfadonhas e redutoras. E é assim que os admiráveis e maravilhosos traços do
parceiro tornam-se as coisas feias e terríveis que a pessoa gostaria de ter
percebido antes! Embora essas qualidades sejam sempre idênticas, em algum
momento do relacionamento elas ganham nomes diferentes.
As coisas mais atraentes no parceiro
também são, em geral, as que têm maior carga de sentimentos ambivalentes. É por
isso que minhas conversas com casais sempre começam do mesmo modo que iniciei a
minha entrevista com os Brett, sentados lado a lado à minha frente.
—
Digam-me — perguntei ao jovem casal —, qual foi a primeira coisa que os atraiu
no outro?
—
Meu olhar passou de Laura, atenta e observadora, para o rosto ligeiramente
cansado de seu marido Tom, — O que é que você acha que a fez especial para
ele... e você, especial para ela?
Por mais mundana que me parecesse a
pergunta, ela provocou no casal a costumeira reação de surpresa e até mesmo de
susto. Laura respirou fundo, pegou uma mecha de seus longos cabelos
louro-escuro e lançou-a sobre o ombro. Tom parecia estar a ponto de saltar mas,
em vez disso, afundou-se ainda mais no macio sofá marrom. Viraram-se um para o
outro, com um sorriso; Laura enrubesceu e, então, os dois caíram na risada.
O que ficou claro é que os Brett viam a
si mesmos como tipos humanos muito diferentes — como pólos opostos, em muitos
sentidos.
Quase no fim da nossa primeira conversa,
por exemplo, eu lhes perguntei: — Se alguém que vocês dois conhecem... digamos,
um amigo ou uma pessoa da família... estivesse descrevendo o relacionamento de
vocês para alguém de fora, o que vocês acham que ele diria?
—
Improvável — respondeu Tom de imediato, com um sorriso.
—
Improvável? — Por quê? — perguntei. — Ah, sei lá — ele encolheu os ombros —,
ler jornal ou ir à igreja, cinismo ou fé em Deus... Eu sou muito lógico e
reservado, e a Laura é exatamente o oposto.
Ele hesitou e olhou para Laura, que
assentia com a cabeça e mantinha uma expressão ao mesmo tempo compungida e
alegre. — Você é calmo e passivo — admitiu ela—, e eu estou sempre acesa,
pronta para o que der e vier. — Ele concordou e me disse: — Nós somos
diferentes em tudo o que se possa imaginar...
Na verdade, como muitos casais que
parecem viver em casamento de opostos, eles estavam lidando com o mais
penetrante de todos os problemas conjugais: distinguir quais os sentimentos,
desejos, pensamentos, etc. que estão dentro de um e quais os que estão dentro
do parceiro.
Esse dilema está relacionado com a
demarcação das fronteiras pessoais. A principal causa de angústia nos
relacionamentos íntimos e responsáveis é, na verdade, uma confusão básica entre
saber exatamente o que está acontecendo na nossa própria cabeça e o que está
acontecendo na cabeça do parceiro.
Muitos casais, como os Brett, parecem
ser pólos opostos — duas pessoas totalmente diferentes. São como
marionetes num espetáculo: cada um deles desempenha um papel bem diferente do
outro na parte do palco que está aberta ao olhar do observador objetivo; mas,
fora da vista, os cordões das marionetes se emaranham. Eles estão
profundamente enredados e emocionalmente interligados, abaixo do nível da
percepção consciente de cada um. Pois cada um deles incorpora, carrega e
expressa pelo outro os aspectos reprimidos do eu (o ser interior) do
outro.
Examinando o relacionamento dos Brett, o
que parecia estar ocorrendo era uma divisão emocional do trabalho. Era como se
aquele casal tivesse tomado certos desejos humanos, atitudes, emoções, modos de
se relacionar e se comportar — uma vasta gama de sentimentos e reações que
poderiam ser partes integradas do repertório de uma pessoa — e os
repartisse à moda do "eu fico com isto e você fica com aquilo".
Como a maioria dos casais, eles fizeram
essa "partilha" por meio de um acordo inconsciente, não-verbalizado
mas muito eficaz. No seu relacionamento, Laura ficava com o otimismo e Tom com
o pessimismo; ela acreditava em tudo, ele era o cético; ela queria abertura
emocional, ele queria guardar-se para si mesmo; ela se aproximava e ele se
afastava — o homem fugindo da intimidade. Juntos, formavam um organismo
adaptativo plenamente integrado; só que Laura tinha que cuidar de toda a
inspiração e Tom, de toda a expiração.
No entanto, se Laura, no palco, parecia
querer total intimidade, honestidade, integridade e unidade, fora do palco ela
e Tom tinham realmente um acordo. Sempre que ela tentava aproximar-se dele, o
cordão da autonomia de Tom era ativado e ele era impelido — de um modo quase
reflexo — a se afastar de imediato. Ela dependia dele para preservar o espaço
necessário entre ambos.
Pois Laura, como qualquer outra pessoa,
precisava de alguma autonomia própria — algum território pessoal no qual ela
pudesse ser uma pessoa por direito próprio, buscar seus próprios desejos e
objetivos individuais. Mas para Laura, satisfazer suas próprias necessidades
independentes era percebido como algo errado e perigoso — algo que uma mulher
adulta sadia não faz. Para ela, o papel certo, como mulher, era concentrar-se
em permanecer próxima, no relacionamento; ela não conseguia reconhecer
suas necessidades autônomas como algo que existia dentro dela, algo que ela
realmente queria. Ela só tinha consciência das necessidades do eu (o eu
separado e independente) na medida em que essas necessidades existiam no parceiro
e eram expressadas pelo parceiro.
Do mesmo modo, o desejo natural de Tom
de se aproximar intimamente de outra pessoa era uma necessidade que ele
via, não dentro de si mesmo, mas como algo que basicamente existia em
Laura. A necessidade de estar próximo de sua parceira, no contexto de um
relacionamento confiante e mutuamente revelador, era vista como
necessidade dela. Tom nunca sentia isso como um desejo ou uma
necessidade que se originava dentro do seu próprio ser, Ele era, a seus
próprios olhos, auto-suficiente; ou seja, ele bastava a si mesmo.
Mas, ao mesmo tempo em que Laura
dependia de Tom para se afastar quando ela se aproximava, Tom dependia de Laura
para tentar a aproximação a fim de se sentir necessário e desejado — íntimo.
Em lugar de expressar diretamente
qualquer desejo ou necessidade de intimidade (ou mesmo conscientizar-se desses
desejos e sentimentos e assumir a responsabilidade por eles), Tom
precisava dissociá-los de sua consciência. Esses pensamentos e desejos o faziam
sentir-se demasiado exposto, demasiado vulnerável! Quando queria proximidade,
ele precisava sentir esse desejo como se viesse da esposa; ele precisava
assegurar-se, sem qualquer reconhecimento consciente do que estava fazendo, de
que o "cordão" da intimidade de Laura era puxado. Uma maneira de
fazê-lo, talvez, seria adotar um ar sentimental e abstraído para que ela
ficasse a se perguntar se ele não estaria pensando em Karen. E então Laura iria
persegui-lo ansiosamente... em busca do intercâmbio íntimo que ele próprio
desejava.
O que acontecia no relacionamento desse
casal é extremamente comum nos casamentos em geral. O conflito que os dois
parceiros estavam enfrentando — um conflito entre querer satisfazer suas
próprias necessidades individuais e querer satisfazer as necessidades do
relacionamento — foi dividido igualmente entre eles. Em vez de serem capazes de
admitir que ambos queriam intimidade e que ambos queriam buscar seus próprios
objetivos independentes — ou seja, que o conflito autonomia/intimidade era
um conflito que existia dentro da cabeça de cada um — os Brett,
inconscientemente, fizeram esse acordo secreto.
Laura nunca precisaria assumir
conscientemente sua necessidade de um espaço pessoal; Tom nunca precisaria
admitir para si mesmo seu próprio desejo de ser emocionalmente aberto,
confiante e íntimo. Ela carregava, pelos dois, a necessidade de intimidade
(necessidade do relacionamento). Ele carregava, pelos dois, a necessidade de
autonomia (a necessidade que cada pessoa tem de perseguir seus objetivos
individuais). Laura, portanto, sempre parecia querer estar um pouco mais perto
e Tom sempre parecia querer estar mais distante e desimpedido.
O resultado foi que, em vez de um
conflito interior (algo que existia dentro do mundo subjetivo de cada
um), o dilema desse casal tornou-se um conflito interpessoal — um
conflito que teria de ser constantemente travado entre eles.
Essa transição de um problema
intrapsíquico (ou seja, um problema dentro da mente de um indivíduo) para
um conflito interpessoal (ou seja, uma dificuldade que duas pessoas enfrentam)
ocorre por meio da identificação projetiva.
Esse termo refere-se a um mecanismo
mental muito penetrante, traiçoeiro e geralmente destrutivo, que envolve a
projeção dos aspectos negados e reprimidos da experiência interior de uma
pessoa sobre o seu parceiro íntimo e, a seguir, a percepção desses sentimentos
dissociados como existentes no parceiro. Não apenas os pensamentos e
sentimentos indesejáveis são vistos como estando dentro do parceiro, como
também o parceiro é encorajado, por meio de "deixas" e provocações, a
comportar-se como se eles lá estivessem! E então a pessoa identifica-se
indiretamente com a expressão, pelo parceiro, das emoções, pensamentos e
sentimentos reprimidos.
Um dos melhores e mais claros exemplos
do modo como a identificação projetiva opera é mostrado pelo homem totalmente
não-agressivo e que jamais se enraivece. Esse homem, que é singularmente
destituído de raiva, só pode perceber os sentimentos de raiva à medida que eles
existem numa outra pessoa — na esposa, é mais provável. Quando algo
perturbador acontece a esse homem que jamais se enraivece, e
ele experimenta emoções de raiva, ele não terá um contato consciente
com elas. Ele não vai saber que está com raiva, mas ai ficar muito feliz
se detonar uma explosão de hostilidade e raiva na esposa.
A esposa, que talvez não estivesse
sentindo raiva alguma antes da interação, de repente descobre que está dominada
pela raiva; na verdade, sua raiva, que parecia dever-se a qualquer outro
motivo, é a raiva que está sendo vivida pelo marido. Num certo sentido, com
isso ela está "protegendo" o marido contra certos aspectos do seu ser
interior que ele não consegue assumir e admitir conscientemente.
O marido que jamais se enraivece pode
então se identificar com a expressão, pela esposa, da raiva que ele reprimiu
sem jamais precisar assumir responsabilidade pessoal por essa raiva — nem mesmo
em termos de se conscientizar do fato de que, para começar, quem estava com
raiva era ele! E é muito frequente que os sentimentos de raiva, reprimidos com
tanta firmeza dentro do eu, sejam criticados no parceiro com a mesma
severidade, Numa situação de identificação projetiva, o marido que jamais se
enraivece geralmente se horroriza diante do temperamento violento e das
expressões e comportamentos impulsivos e descontrolados da mulher!
Do mesmo modo, a pessoa que jamais se
entristece talvez só veja suas próprias depressões à medida que elas se
expressam no parceiro (que, nessas circunstâncias, é visto como a pessoa que
carrega a tristeza e o desespero por ambos).
De modo geral, as projeções tendem a
ser intercâmbios — um "comércio" de partes
reprimidas do eu, que os dois membros do casal concordam em fazer. E, então,
cada um deles vê no outro as coisas que não consegue perceber em si mesmo... e
luta, incessantemente, para mudá-las".