Este é um espaço para a reflexão de temas que em algum momento e por alguma razão (do meu contexto pessoal ou da minha prática clinica) se tornaram, usando uma expressão gestáltica, importantes FIGURAS no imenso FUNDO existencial.

17 de janeiro de 2013

Sobre os filhos

Dos Filhos (Khalil Gibran)

E uma mulher que carregava o filho nos braços disse: “Fala-nos dos filhos.”
E ele disse:
Vossos filhos não são vossos filhos.
São filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E, embora vivam convosco, a vós não pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Pois eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis faze-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois o arco dos quais vossos filhos, quais setas vivas, são arremessados.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com Sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como Ele ama a flecha que voa, ama também o arco, que permanece estável.



Pouco pode ser acrescentado, Khalil Gibran já nos disse o essencial.
Destrinchar seus ensinamentos em explicações teóricas, racionais e psicológicas é um risco de não falarmos à alma... os lampejos de compreensão, filhos legítimos da linguagem poética, podem ser terrivelmente mutilados e a verdadeira sabedoria alienada por terminologias inférteis...
Pretendo apenas, como mãe de uma menininha de um ano e meio, externar algumas reflexões que hoje, após inúmeros contatos teóricos com a maternidade e a infância, ganharam uma significação totalmente especial.
Li recentemente a seguinte frase, cujo autor desconheço: "Já dizia o mestre: tentar adquirir experiência apenas com teoria é como tentar matar a fome apenas lendo o cardápio".
E assim chego a "matern(a)idade", podendo saborear os doces e amargos sabores deste vasto cardápio, outrora tão folheado.  
Sensibilizada pela analogia feita entre os pais e o arco, entre os filhos e as flechas (ambos instrumentos do Grande Arqueiro) e pela verdade, tão belamente anunciada por Gibran, de que a vida não anda para trás e que sua inexorável mira é a "mansão do amanhã", reflito sobre dois pontos que podem barrar ou liberar a concretização de nossa missão enquanto pais: 

Podeis outorgar-lhes vosso amor , mas não vossos pensamentos,
Pois eles têm seus próprios pensamentos.
   
1- Os padrões de certo e errado durante a infância são indiscutivelmente necessário pois funcionam como uma primeira baliza que poderá favorecer uma maior desenvoltura do exercício futuro do livre arbítrio, que é a escolha individual e intrasferível entre o que se julga como certo ou errado. Escolher, optar significa "matar", sacrificar as diversas possibilidades em favor daquela que é escolhida. A decisão é, portanto, um processo que envolve riscos: o risco de estar errado, o de se responsabilizar, o de se arrepender... A escolha, por conter o germe do erro, é, por si só, um processo difícil, quem dirá para aqueles que aprenderam que errar é algo inadmissível e irremediável. Sendo assim, "...é importante que a autoridade dos pais exprima padrões de certo e errado de maneira suficientemente permissiva ou flexível de modo a não sufocar a capacidade do ego para aprender cometendo seus próprios erros. Quando uma pessoa sente que cometer um erro é um acontecimento catastrófico, é levada a evitar a escolha e a decisão. Assim, o desenvolvimento de uma personalidade individual acaba sendo sufocado" (Whitmont, A Busca do Símbolo - conceitos básico de psicologia analítica, p.245). E estaremos diante de uma fecha que não pode chegar ao seu destino: sair dos padrões de obediência e submissão às figuras de autoridade, estabelecer um padrão interior de certo e errado e vencer o medo de assumir suas escolhas, desfrutando e arcando com as consequências, na tranquilidade de que nada é definitivo e tão drástico ao ponto de nos paralizar.

Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis faze-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.

2- Desde a infância já apresentamos alguns traços de personalidade, possíveis de serem observados quando somos ainda bem pequenos. Nossas preferências, qualidades e características temperamentais encontram na família uma espécie de porto, nem sempre seguro, pois "a alfândega familiar" muitas vezes é bem rígida e não deixa passar nada daquilo que contradiz suas expectativas. O ambiente familiar tem uma influência crucial no processo de ancoragem de nossas habilidades e dificuldades. As expectativas parentais reforçam alguns traços pessoais, recompensam certas qualidades e desaprovam certos interesses e habilidades. Há uma inter-relação entre a criança e seu meio e assim como as expectativas familiares influenciam o desenvolvimento dos traços pessoais, estes também influenciam as expectativas da família. Existe, portanto, uma relação mútua de influência e toda atenção e cuidado são bem vindos aos pais educadores. Se uma determinada característica obtém a aprovação da família, a auto-estima não é abalada, mas a valorização excessiva de um potencial pode levar à unilateralidade e à privação do desenvolvimento de novas potencialidades. Se a família recompensa e encoraja o desenvolvimento daquilo que para a criança é mais natural, ela se sente bem consigo mesma por ter espaço para explorar seus interesses. O oposto acontece quando as características inerentes e a família não caminham juntas. Mas a oposição não muda os sentimentos e interesses mais profundos, apenas faz com que o indivíduo não se sinta bem consigo mesmo por ter os traços e interesses que tem, e se for incentivado a "ser outro e não ele mesmo" o resultado é uma profunda sensação de inautenticidade. Aí estaremos diante de um arco que ao invés de projetar suas flechas para longe, projetou nelas seus anseios, projetos e expectativas, deixando-as demasiadmente "pesadas" para voarem livres na direção que deveriam... 
E como nos ensina Jung, "só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos", pois é justamente o afastamento de nossa verdade que nos faz adoecer. Sejamos arcos ou flechas, na mão do Grande Arqueiro somos todos filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma!




Nenhum comentário: